Nossa imprensa golpista deve aprender com o NY Times
Fazer autocrítica transmite credibilidade à imprensa.
A imprensa brasileira, de vez em quando diz que "errou", mas não faz autocrítica com a qualidade que vemos abaixo.
Esta tradução da matéria do NY Times saiu na UOL, que pertence à Folha. Ambos precisam aprender com o NY Times...
"Na opinião dos eleitores, o governo não funciona, o sistema econômico não funciona e, como ouvimos com muita frequência, a mídia noticiosa tampouco funciona. Bem, algo certamente não está funcionando. É possível consertar o que há de errado, mas devemos fazê-lo já e resolver o problema de vez."
Mídia dos EUA volta a medir de forma errada o pulso
do eleitor
JIM RUTENBERG
DO "NEW YORK TIMES"
DO "NEW YORK TIMES"
09/11/2016 12h32
Toda a deslumbrante tecnologia, os
sistemas big data e a sofisticada modelagem estatística que as redações
noticiosas dos Estados Unidos empregam para cobrir a política presidencial, uma
empreitada fundamentalmente humana, não conseguiram salvar o jornalismo
norte-americano de uma vez mais não conseguir acompanhar a história e o
restante do país.
A mídia noticiosa acabou por ignorar
aquilo que estava acontecendo ao seu redor, e era uma dessas histórias que só
se vê uma vez na vida. Os números não eram apenas uma má orientação quanto ao
panorama eleitoral –eles na verdade se deslocavam na direção oposta àquilo que
estava de fato acontecendo.
Ninguém previu uma noite como essa – que
Donald Trump conquistasse uma vitória inesperada sobre Hilary Clinton e, com ela,
a Presidência dos EUA.
O erro da noite da terça-feira (8) foi
mais que um erro de pesquisa. Foi o erro de não capturar a raiva fervilhante de
uma grande porção do eleitorado norte-americano, que se sente excluído de uma
recuperação econômica seletiva, traído por acordos de comércio internacional
que essas pessoas encaram como ameaça aos seus empregos, e desrespeitado pela
elite de Washington, por Wall Street e pelos grandes veículos de mídia.
Os jornalistas não questionaram os
números das pesquisas quando estes confirmaram seu instinto de que Trump jamais
conseguiria vencer, nem em um milhão de anos. Os partidários de Trump que ainda
acreditavam nas chances de seu candidato eram retratados como pessoas que
haviam perdido o contato com a realidade. Mas o resultado final demonstrou o
oposto.
Apenas alguns meses atrás, grande parte
da mídia europeia não previu o resultado da votação que decidiria a saída
britânica da União Europeia. E a eleição presidencial de 2016 terminou do mesmo
modo que o plebiscito do "brexit".
A eleição foi precedida por mais de um
mês de declarações de que a disputa era acirrada, mas estava, para todos os
efeitos, decidida. E essa avaliação se manteve mesmo depois da notícia surgida
no final de outubro, de que o FBI estava revisando um novo lote de e-mails
associado ao servidor privado usado por Hillary quando ela foi secretária de
Estado.
A vitória dela seria "substancial,
mas não esmagadora", reportou o Huffington Post, depois de garantir aos
eleitores que a candidata "tem tudo sob controle". Era uma previsão
que mais ou menos batia com a da seção Upshot, do "New York Times",
que no começo da noite de terça-feira estimava as chances de vitória de Hillary
em 84%.
E então veio a completa virada, quando
as grandes organizações noticiosas saíram correndo para apanhar o ônibus que
havia acabado de atropelá-las. Por volta das 22h30 (1h30 no horário de
Brasília), a projeção da seção Upshot havia se invertido, e mostrava
probabilidade de vitória de 93% para Trump.
Outros sites também reverteram suas
previsões de uma provável vitória de Hillary para uma provável vitória de
Trump. John King, da CNN, proclamou à sua imensa audiência da noite de eleição
que, nas duas semanas anteriores, "a conversação que vínhamos mantendo
estava dissociada da realidade", com base no mapa de resultados que ele
tinha diante de seus olhos, segundo o qual Trump tinha chance clara de chegar à
Casa Branca.
Foi uma admissão extraordinária:
se a
mídia noticiosa não estava apresentando um cenário político baseado na
realidade, ela estava fracassando no cumprimento de sua missão mais
fundamental.
A inesperada virada nos cômputos
eleitorais imediatamente despertou questões sobre o valor das modernas
pesquisas eleitorais. Será que elas ainda podem capturar com precisão a opinião
pública, agora que tantas pessoas são difíceis de contatar por usarem celulares
cujos números não constam de listas?
"Acho que as pesquisas foram uma
porcaria", me disse Stanley Greenberg, especialista democrata em pesquisas
eleitorais, na noite da terça-feira. "Mas acho também que boa parte do
erro aconteceu na interpretação dos números".
Mike Murphy, estrategista do Partido
Republicano, disse ao canal de notícias MSNBC que "minha bola de cristal
foi completamente esmigalhada", porque sua projeção apontava para o
resultado oposto. "Esta noite marca a morte da análise de dados", ele
acrescentou.
Independentemente do resultado, ficou
claro que as pesquisas eleitorais e as projeções subestimaram a força eleitoral
de Trump e do movimento que ele construiu, o qual vem desafiando todas as
previsões e expectativas desde que ele anunciou sua candidatura, no ano
passado.
E é por isso que o problema que emergiu
na noite de terça-feira implica em bem mais que más pesquisas. Ficou claro que
há algo fundamentalmente defeituoso no jornalismo, que se provou incapaz de
acompanhar o clima de oposição às elites tradicionais que está virando o mundo
de cabeça para baixo.
Política não gira só em torno de
números; dados nem sempre capturam a condição humana, que é o sangue da
política norte-americana. E a reportagem política não tem como função única
dizer quem vai ganhar e quem vai perder. Mas essa questão –a corrida eleitoral–
muitas vezes obscurece tudo mais, e termina por inevitavelmente influenciar
outras áreas de reportagem.
É preciso questionar o quanto a
cobertura poderia ter sido diferente se as pesquisas e as análises estatísticas
não previssem como quase certa a vitória de Hillary. Talvez houvesse uma
exploração mais profunda das forças que estava propelindo Trump à vitória, já
que boa parte de seu comportamento teria torpedeado a campanha de qualquer um
dos candidatos que o precedeu.
Talvez tivéssemos descoberto muito mais
sobre como o plano de Trump para construir um muro na fronteira sul do país se
sairia no Congresso, ou quais seriam os termos de seu projeto de lei para
facilitar processos contra jornalistas. E quanto ao seu plano para bloquear a
entrada de pessoas vindas de países ligados ao terrorismo?
E houve a queda mundial dos mercados de
ações mundiais na noite de terça-feira, que não representou apenas números em
uma tela, mas riqueza desaparecendo. As expectativas estavam desalinhadas, e
Wall Street lida mal com expectativas desalinhadas.
O que é espantoso é quantas vezes a
mídia noticiosa optou por desconsiderar os movimentos populistas que vêm
abalando a política dos Estados Unidos desde pelo menos 2008. Ela inicialmente
não percebeu a ascensão do Tea Party, que resultou na onda republicana das
eleições de 2010 e 2014, que supostamente seriam os anos nos quais a elite do
Partido Republicano retomaria o controle sobre sua insurgência interna.
E em seguida, é claro, veio a
inesperada ascensão de Trump à candidatura de seu partido. E depois de cada
fracasso, vem a promessa de aprender a lição, e não permitir que o erro se
repita. E no entanto as lições não foram aprendidas com rapidez suficiente para
acertar no momento mais importante.
Em uma coluna anterior, citei o
escritor conservador Rod Dreher, que declarou que a maioria dos jornalistas é
cega ao próprio "preconceito contra a religião conservadora, preconceito
contra as pessoas do campo, e preconceito contra a classe trabalhadora e os
brancos pobres".
Não importa qual fosse o resultado da
eleição, decerto ouviríamos os executivos das empresas de notícias repetindo
que precisam enviar seus repórteres ao coração do país, para que compreendam
melhor os cidadãos.
Mas isso não bastará para capturar algo
de essencial:
o chamado "território visto do avião" não é um lugar.
Ele está em parte, em Long Island, Queens e em boa parte de Staten Island (em
Nova York), em certos bairros de Miami e até em Chicago. E, sim, são regiões habitadas
principal mas não exclusivamente por brancos de classe trabalhadora.
Essas pessoas acham que há algo de tão
errado com o país que todas as mentiras contadas por Trump este ano, as
incontáveis reportagens sobre suas falsidades –que ele proferiu em quantidade
maior do que Hillary– e a vigorosa investigação de suas transgressões pessoais
e de negócios as incomodaram muito menos do que a percepção dos males nacionais
que Trump estava apontando e prometendo curar.
Na opinião deles, o governo não funciona,
o sistema econômico não funciona e,
como ouvimos com muita frequência,
a mídia
noticiosa tampouco funciona.
Bem, algo certamente não está funcionando. É
possível consertar o que há de errado, mas devemos fazê-lo já e resolver o
problema de vez.
Tradução de PAULO MIGLIACCI - UOL - Folha.
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