Os Estados Unidos e Inglaterra viram coadjuvantes
O Estadão de hoje, apesar da mediocridade no trato com a
política brasileira, publicou um dos melhores artigos que já li sobre a China. Enquanto Estados Unidos e Inglaterra viram coadjuvantes, Alemanha, França e Rússia ficam observando. Não deixem de ler...
O maior experimento
político da Terra
*TIMOTHY,
GARTON ASH, ESPECIAL - O ESTADO DE S.PAULO
07 Junho 2015 | 02h 03
Perspectivas de guerra ou paz na
Ásia-Pacífico dependem do sucesso interno da China
Xi conseguirá? Essa é a grande
questão política do mundo atual. "Sim, Xi pode", alguns em Pequim me
dizem. "Não, ele não pode", dizem outros. O sábio sabe que ninguém
sabe.
Há um grande debate em andamento em Washington sobre se os
Estados Unidos deveriam mudar sua política para a China em resposta à posição
mais assertiva de Pequim sob a batuta do presidente Xi Jinping. Isso inclui a
anunciada instalação de artilharia nas ilhas artificiais que os chineses estão
construindo sobre recifes no Mar do Sul da China.
Também é assunto importante para
todos em toda parte se a China será capaz de sustentar seu crescimento
econômico na medida em que esgota seu pronto suprimento de mão de obra barata -
e evitar as armadilhas nas quais tropeçaram algumas economias de média renda.
Mas, ainda mais que outros países, o futuro da política externa da China e de
sua economia depende da qualidade das decisões adotadas por seu sistema
político.
Diretrizes. Por enquanto, está claro o que Xi pretende.
Ele está tentando manobrar uma economia e uma sociedade complexas em tempos
difíceis com mudanças de cima para baixo, lideradas e controladas por um
partido leninista expurgado, disciplinado e revigorado. Está fazendo isso em
condições sem precedente para esse partido, tentando conscientemente combinar a
"mão invisível" do mercado com a "mão invisível" do
partido-Estado.
O "grande timoneiro" Mao
Tsé-tung é nitidamente uma inspiração, mas o reformador pragmático Deng
Xiaoping é outra. Um comentário da agência estatal de notícias Xinhua declarou:
"Para reacender uma nação, Xi carrega a tocha de Deng."
Boa parte do reacender da tocha
teve a ver com estabelecer o controle sobre partido, Estado, militares e o que
existe de sociedade civil depois do caso Bo Xilai tornar visível uma crise
interna do partido governante. Mas, como um comunista hereditário, o presidente
pode genuinamente acreditar que governantes esclarecidos e habilidosamente
autoritários podem lidar melhor com as coisas - a aposta de Lenin, mas também,
em variações distintas, de Platão e Confúcio.
O experimento é radicalmente
transformador para os milhares de funcionários expurgados que desapareceram no
abraço terno do partido e dos órgãos estatais. Ser um dirigente de alto escalão
da Fifa é brincadeira em comparação, mesmo que alguns deles possam ter perdido
recentemente seus desjejuns suíços de cinco estrelas.
É também extremamente desconfortável para os chineses que
acreditam em um debate livre e crítico, iniciativa civil independente e
organizações não governamentais (ONGs). Nisso, notei um forte contraste com
visitas anteriores a Pequim. Senti um verdadeiro nervosismo entre intelectuais
que alguns anos atrás se expressavam sem medo.
Os limites do que pode ser dito
publicamente parece estar se estreitando o tempo todo. Ativistas importantes,
defensores de direitos civis e blogueiros foram detidos, acusados e
encarcerados. Um novo projeto de lei propõe restrições quase
"putinescas" a ONGs. Outro estende a definição de "segurança
nacional" para incluir ideologia e cultura, com formulações como
"promover a cultura excepcional da nacionalidade chinesa e resistir à
infiltração de culturas danosas".
Sim, isso tudo é verdade, dizem
analistas da vertente "sim, Xi pode" - e, se eles estão fora do
sistema, geralmente acrescentam que isso é muito lamentável. Mas, dizem eles,
vejam o programa de reforma que está sendo aplicado com igual determinação.
Suas principais características não são facilmente resumidas em termos políticos
e econômicos familiares, pois a mistura chinesa é única.
Se tudo isso ocorrer conforme o
pretendido, o capitalismo democrático liberal ocidental terá um competidor
ideológico formidável, com apelo mundial, em especial no mundo em
desenvolvimento.
Para o Ocidente, haverá uma esperança: a competição nos mantém
alertas. A arrogância ocidental do início dos anos 2000, tanto no exterior,
tramando uma mudança de regime no Iraque, quanto em casa, tolerando os excessos
turbinados do capitalismo financeiro, certamente tiveram algo a ver com a
sensação de não enfrentar uma competição ideológica.
Tensão militar. Agora,
esse desfecho obviamente não é o que eu, como liberal e democrata, desejaria a
amigos chineses. Mas desejo enfaticamente para eles, e para nós, uma China que
experimente mudanças evolutivas e não revolucionárias. Há muitas razões para
essa visão - no mínimo, a de que a maioria dos chineses a adota -, mas a mais
importante diz respeito a nada menos que guerra e paz.
Um regime comunista em crise provavelmente
não conseguiria resistir à tentação de jogar a carta nacionalista mais
agressivamente em algum lugar de sua vizinhança, apoiando-se em décadas de
doutrinação, uma interpretação seletiva do passado recente e uma narrativa de
150 anos de humilhação nacional. Se a China já está advertindo contra a
vigilância americana sobre suas ilhas artificiais, imagine como ela poderia
agredir se enfrentasse uma crise sistêmica em casa.
Um conflito armado não precisaria
ser diretamente entre a China e os EUA para ser perigoso. Por mais claras que
sejam as "linhas vermelhas" traçadas pelos EUA - e essas linhas
deveriam certamente ser mais claras do que Barack Obama tem sido, tanto no
interesse da China como de todos os demais - o risco de um erro de cálculo
seria alto.
Concluo, portanto, que, embora esse não seja o caminho evolutivo
que eu e muitos outros prezamos e saudamos na China por ocasião da Olimpíada de
Pequim, ainda precisamos torcer para que Xi consiga "cruzar o rio sentindo
as pedras".
Minha maior preocupação não vem de
uma crença pessoal na democracia liberal como uma realização da liberdade
individual, embora seria desonroso fingir que isso não importa, mas do
raciocínio de análise política que nos leva à democracia liberal. Pensamentos
como "se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário. Se anjos
fossem governar os homens, não seriam necessários controles externos nem
internos", de James Madison em The Federalist Papers, número 51. Sim,
caros camaradas, pode ser verdade, mesmo que tenha sido dito por um americano.
No curto a médio prazos, minha
impressão é que o tipo de autoritarismo astuto de Xi manterá não só seu partido
no poder, como o show todo no rumo. Esse médio prazo pode certamente se
estender pelos dois períodos de cinco anos que são permitidos como mandato
formal do presidente Xi - o Partido Comunista chinês aprendeu uma lição da era
soviética de Leonid Brejnev de uma maneira que a Fifa claramente não aprendeu.
Ainda há muitos recursos de poder significativos à sua
disposição, incluindo alguma genuína popularidade pessoal e um orgulho nacional
generalizado. Eu faria, portanto, uma - pequena - aposta que, nesse sentido
estrito, "sim, Xi pode" se mostrará correto. Mas e num sentido mais
amplo e num prazo mais longo? Fiquem atentos a uma década de 2020 turbulenta. /
TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
*É PROFESSOR DE ESTUDOS EUROPEUS NA UNIVERSIDADE DE OXFORD, ONDE
CHEFIA O PROJETO FREESPEECHDEBATE.COM, E BOLSISTA SÊNIOR NO HOOVER INSTITUTION
DA UNIVERSIDADE STANFORD. SEU LIVRO MAIS RECENTE É 'OS FATOS SÃO SUBVERSIVOS:
ESCRITOS POLÍTICOS DE UMA DÉCADA SEM NOME'
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