Faltam Historiadores
e sobram Economistas
Ler jornais no Brasil se transformou em uma tortura. São
economistas de mais e historiadores de menos. E mesmo os jornalistas estão
sendo contaminados por este desvio conjuntural. A hegemonia do capitalismo
financeiro sobre o capitalismo industrial e produtivo. No financeiro sobram
economistas, no produtivo faltam engenheiros...
Como hoje comemora-se os 25 anos da queda do Muro de Berlim,
olhando todos os jornais, o único artigo que me motivou a reproduzir foi este
do professor de História da USP, publicado na caderno EU&Fim de Semana do
jornal Valor.
Apesar das ironias, tem muitas verdades, principalmente, as
não reconhecidas pelos economistas e jornalistas políticos.
Vale a pena ler...
Ironias da história sem o
Muro
Por Angelo Segrillo | Para o
Valor - 07/11/2014
às 05h00
Quando
tentamos fazer um balanço dos 25 anos que se passaram desde a queda do Muro de
Berlim, uma primeira constatação é que os principais desenvolvimentos nas
relações internacionais desde então se fizeram de uma forma irônica, desafiando
a lógica que seria de se esperar dos acontecimentos envolvendo aquele 9 de
novembro de 1989. Vejamos algumas dessas ironias.
Primeira
ironia: EUA e mundo unipolar. A queda do Muro de Berlim foi seguida, logo
depois, pela derrocada da única outra superpotência além dos EUA: a União
Soviética. Como os EUA ficaram sem rival à altura, imaginou-se que o mundo se
tornaria unipolar, com os EUA reinando como a única superpotência hegemônica e
dominando economicamente o mundo através da globalização centrada em si.
Entretanto, não foi isso que se verificou. Economicamente, nunca os EUA
estiveram tão fracos como agora.
O
momento máximo do poder econômico do país foi no imediato pós-Segunda Guerra
Mundial. Durante a Segunda Guerra Mundial, os países europeus, a URSS e outros
tiveram grande destruição enquanto os EUA não só passaram incólumes como sua
produção aumentara para suprir os aliados. Assim, logo após o conflito, os EUA
respondiam sozinhos por pouco mais de 50% da produção industrial mundial.
De
lá para cá, a participação dos EUA no PIB mundial vem decrescendo de maneira
mais ou menos constante: hoje, está abaixo de 20%. Não, o mundo atual não é um
mundo em que o gigante americano reina mais supremo do que nunca. Pelo
contrário, está mais fraco que no século XX. E, com esse enfraquecimento
econômico dos EUA tendo consequências políticas e militares, os especialistas
têm dificuldade em definir a "polaridade" do mundo atual.
Como
classificá-lo de unipolar se os EUA estão enfraquecidos e outros países
subindo?
Bipolar
certamente não é, pois a China ainda não chegou ao mesmo patamar dos EUA.
Multipolar seria uma boa tentativa, se olharmos apenas a parte econômica, mas,
militarmente, os EUA ainda estão bem acima dos outros. Não é à toa que abundam
as classificações "mistas", como a de Joseph Nye Jr. (mundo
multipolar no tabuleiro econômico e unipolar no militar) ou a de Samuel
Huntington com seu estranho conceito de unimultipolaridade...
Segunda
ironia: o fim do comunismo. A queda do Muro de Berlim e o declínio da URSS
chamaram a atenção dos regimes socialistas como ineficientes, principalmente no
campo econômico. Simplesmente, não teriam conseguido sobreviver à competição
com o Ocidente em termos econômicos e tecnológicos. A derrubada do Muro de
Berlim decretara o fim do comunismo como alternativa econômica válida. Que o
dissessem os alemães orientais em 1989, literalmente correndo por cima do Muro
para o paraíso de consumo da Alemanha ocidental. Entretanto, passados anos da
queda, vemos que o centro mais dinâmico da economia mundial é... um país
comunista!
A
China ultrapassou como um bólido vários países avançados, para chegar ao posto
atual de segunda maior economia do mundo (com possibilidades concretas de
chegar ao primeiro lugar em menos de duas décadas). Por essa ninguém esperava:
um país comunista começando a ditar as regras do jogo econômico mundial. É
claro que se pode discutir se a China é realmente um regime socialista ou se já
passou totalmente para o lado da economia privada capitalista, mas esse é um
tema controverso.
O
que se pode dizer, com certeza, é que é uma economia em transformação, em
transição. Mas para onde irá é uma incógnita. A experiência da URSS mostra que
as reformas do tipo "recuo à economia de mercado" nos países
socialistas podem ter diferentes resultados. A perestroika resultou no abandono
total do socialismo e abraço do capitalismo. Mas a NEP (Nova Política
Econômica) nos anos 1920 na URSS (que também foi um "recuo a mecanismos de
economia privada e de mercado") não desembocou no capitalismo e sim na
industrialização dos planos quinquenais a partir da década de 1930.
Quando
a China se tornar a primeira economia do mundo, deixar de ser subordinada e
passar a ditar o ritmo da economia mundial (como os EUA fizeram por muito
tempo), como se comportará? Isso não é tão claro. "Quand la Chine
s'éveillera, le monde tremblera", já dizia um francês arguto do século
XIX...
Terceira
ironia: o fim da Guerra Fria. A queda do Muro de Berlim em 1989 e a
desintegração da URSS em 1991 marcaram o fim da Guerra Fria. Este é um axioma
autoevidente para a maioria dos analistas. Os EUA venceram e a URSS perdeu. Um
contendor aniquilou o outro, terminando com a contenda. Entretanto, se olharmos
hoje, parece que a Guerra Fria está de volta.
Nos
últimos anos, os EUA têm entrado em rota de colisão direta com a Rússia, o que
levou muitos observadores a propor que uma espécie de Guerra Fria está
acontecendo no tabuleiro internacional. Isso é ainda mais surpreendente porque,
logo depois da derrocada da URSS, nos anos 1990, com Yeltsin, parecia que a
Rússia (inclusive por conta de seu enfraquecimento econômico) estava se
aproximando do Ocidente.
Era
realmente o fim da Guerra Fria, até por causa da exaustão econômica de um dos
ex-rivais. Entretanto, nos anos 2000, sob Putin, uma Rússia algo já recuperada
economicamente passa a seguir uma trilha mais assertiva, por vezes até
agressiva, em relação à superpotência americana. Este é um desenvolvimento
surpreendente, não só pela lógica puramente advinda da queda do Muro, mas
também pelo que aconteceu nos anos 1990. Não é à toa que o símbolo da Rússia é
uma águia de duas cabeças olhando em direções opostas...
Esses
são alguns dos desenvolvimentos surpreendentes no mundo nos últimos tempos que
foram contra a lógica do que se poderia esperar 25 anos atrás, quando
testemunhamos em transmissões ao vivo a queda do Muro de Berlim.
As
ironias da história...
Angelo Segrillo é
professor da USP e autor do livro "De Gorbachev a Putin" (ed.
Prismas)
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